A beleza, quando ainda não tomou consciência de sí, é algo comovente pra caramba. Pensava nisso outra sexta-feira, final de aula… havia assim uma colega, prontinha pra balada, no caminho desta aula; e eu tentando não perder o curso da aula (era uma destas aulas realmente imperdíveis) nem tampouco o discurso poético, inocentemente feliz de algumas curvas mais exibidinhas que de costume, desta beleza distraída e agitada, de um brilho extra no olhar que só a promessa de uma sexta-feira traz. Comovente.
Arquivo mensais:maio 2010
Chão de estrelas
De Orestes Barbosa e Silvio Caldas, Chão de Estrelas tem alguns dos versos mais lindos que eu já lí. Primeiro, é bom que se diga, a música tem seus 75 anos – é uma senhora respeitável, nascida em 1935 e com os contornos do português da época. Segundo, eu a descobri bem tarde: em 1956, Manuel Bandeira já dizia que, se fizessem um concurso para a escolha do verso mais bonito do mundo escrito em nossa língua, ele votava no “…Tú pisavas nos astros, distraída…”. Eu acompanho o voto ilustre e acrescentaria ainda que, cada vez que leio/ouço o bendito verso, me dá um travo aqui na garganta. De beleza mesmo, de susto. Que beleza demais, sem aviso (“olha, tá vindo um verso daqueles”) dá susto. 🙂
“Minha vida era um palco iluminado
Eu vivia vestido de dourado
Palhaço das perdidas ilusões
Cheio dos guizos falsos da alegria
Andei cantando a minha fantasia
Entre as palmas febris dos corações
Meu barracão no morro do Salgueiro
Tinha o cantar alegre de um viveiro
Foste a sonoridade que acabou
E hoje, quando do sol, a claridade
Forra o meu barracão, sinto saudade
Da mulher pomba-rola que voou
Nossas roupas comuns dependuradas
Na corda, qual bandeiras agitadas
Pareciam estranho festival!
Festa dos nossos trapos coloridos
A mostrar que nos morros mal vestidos
É sempre feriado nacional
A porta do barraco era sem trinco
Mas a lua, furando o nosso zinco
Salpicava de estrelas nosso chão
Tu pisavas nos astros, distraída,
Sem saber que a ventura desta vida
É a cabrocha, o luar e o violão”.
Schopenhauer Bar
Tive um sonho estranho, ontem à noite: eu tinha um bar. Não um boteco pé-sujo, mas um boteco de respeito: um deck com vista para a cidade, umas vinte e poucas mesas de madeira espalhadas por este deck, um pequeno palco onde uma dupla passava o som (“Desenho de Giz”, voz e violão, tocavam e olhavam para o caixa, onde eu estava – meio tentando agradar, meio sacaneando, eu acho). Garçons chegando em velhas Cegês barulhentas, estacionando no fundo do bar, a briga pelo WC para vestir o uniforme – minha caixa, uma univesitária loira enorme e espirituosa, demora meia hora lá dentro e leva ao desespero a turma da bandeja, que bate à porta, apressa inutilmente a moça. Que sai, deixando um rastro de perfume forte, e respondendo às gracinhas dos garçons (e ganhando a parada, na maioria da vezes). É uma figuraça, a loira.
Logo, a cozinha vai estar atendendo – vejo o trio pelo guichê, preparando o básico para uma noite de sábado. Peço uma meia-porção de calabresa e filé, que divido com a caixa junto à uma cerveja – é quase um ritual, antes de começarem a chegar os clientes. Daqui a umas duas horas, se a noite for boa, ninguém terá tempo para nada, e o bar se transformará num organismo vivo, frenético, um vai-e-vem de pedidos e bandejas realmente assustador. Confiro os últimos detalhes antes de abrir o portãozinho que dá acesso ao deck do bar: geladeiras organizadas, banheiros estão limpos (que vergonha, quando fui cobrado por uma cliente), os garçons apoiados no balcão esperando – dou um sinal e eles se distribuem pelo bar. Desço a escada e abro o portãozinho, a rua vazia ainda. No letreiro, Schopenhauer, vítima de um trocadilho engraçadinho (‘hora do chopp’??) rí para mim, numa caricatura de traço fino, bebendo seu chopp.
faz algum sentido?
…eu estava num canto da rua, batendo papo, quando ví aquele aceno ao longe, e a reconheci. Acenei de volta, mas não era nada do que eu queria fazer: queria era ir até lá e parar alí um minuto ou dois que fossem, perguntar o que acontecia com ela, que eu sabia diferente. E ajudar no que possível, fazer-lhe alguma diferença. É estranho o mecanismo, esta lógica pela qual se vive e age: uma convenção (social, cultural, é só escolher) ter a força de evitar que se possa oferecer um cuidado, um afeto, um estou-aqui-se-precisar, para alguém de quem não se é tão íntimo ou coisa que o valha, mas que se conhece mais que o suficiente para admirar e querer bem. Oferta que ninguém, nem mesmo ela, entenderia direito, vinda de mim. É isso.