mini-continho de hotel

…sei que fiquei hospedado num hotelzinho bacana, bem cuidado, não muito caro e discreto, no entroncamento da Av. Paulista com a Consolação. Era cômodo – meia quadra da empresa onde faria o treinamento – e acertei com o hotel um preço diferenciado, pelas diárias e por uma refeição que eu escolhesse (no caso, o jantar) no restaurante do hotel. Este chamava-se Dali e era decorado com reproduções do pintor catalão nas paredes e detalhes; e pequenino, coisa de vinte e poucas mesas, se tanto.
Todo dia, escolhia um prato diferente do cardápio e me divertia com estas férias imprevistas, num hotel com cara de flat (o prédio fora projetado para apartamentos de quarto-e-sala, e transformado em hotel na década passada) e com uma semana de restaurante livre (simples, mas bom), num pedaço bonito de São Paulo que eu ainda não conhecia. Sempre descia lá pelas 20:30, escolhia o prato da noite, e ficava enrolando em minha mesa por quase uma hora, observando as outras mesas, casais de passagem pela cidade, amigos que combinaram um jantar, gente sozinha como eu, vendedores barulhentos, namorados. Era uma espécie de passatempo, estudo sociológico e alternativa para a tevê do quarto – com imagem e variedade melhores.
Um dia – uma quinta-feira – desci, e encontrei o restaurante estranhamente vazio. Eu era o único cliente alí. Procurei algo no menu e pedi (meio desconfortável) meu jantar; é uma sensação estranha a de um restaurante vazio – a cozinha só servirá você, o garçom idem, e aquele ambiente mesmo pequeno pareceu-me subitamente exagerado, desproporcional. E bem neste dia, enquanto esperava meu pedido, entrou a mulher sozinha. Eu nunca a vira antes alí, e era realmente linda, de perder a respiração; uma morena de corpo e rosto perfeitos, de seus trinta anos, num vestido preto discreto, aliás, uma tentativa impossível de discrição.
Era bonita demais para não ser notada, nem que o restaurante estivesse lotado; e pior, os gestos, o olhar, a segurança dela eram algo de outro mundo. Sentou numa mesa diametralmente oposta à minha, no restaurante agora enorme, e me estudou pelo resto do tempo do jantar. Fiquei incomodado; eu levantava o olhar para qualquer lugar próximo, e aqueles olhos me seguiam, me espetavam na parede mais próxima. A cidade dava o troco à minha indiscrição das noites anteriores.
Nunca descobri quem ela era, ou o que fazia. Tímido demais pra atravessar o restaurante e abordá-la na cara dura, e numa dúvida imensa (profissional? hóspede? solitária? procurando diversão? esperando alguém que não veio?), ví a morena ir embora deixando para mim um sorriso sem muita explicação. Procurei no rosto do garçom alguma outra, mas não havia expressão além daquela de quem espera o fim do expediente.

Marquei bobeira? Provavelmente sim. Figuraria fácil entre as 10 mulheres mais bonitas que já ví, e era uma presença realmente impressionante – porte, andar, voz, olhar, tudo. Do tipo que faz um estrago sem volta na vida do sujeito, se der na telha; era – assim dizer – um mulherão, saída de uma cena de cinema. Femme Fatale. Se estava alí trabalhando, se procurava companhia ou diversão, ou se estava só passando o tempo vendo-me atrapalhado com aquele olhar insistente (curioso, mas experiente), em cima da minha óbvia timidez caipira, é dúvida que fica pra ser resolvida no dia do meu acerto de contas. Aí eu descubro.

Anima (apenas um pensamento avulso…)

Somos, nós, os humanos, imensamente complexos. Mesmo a mais simples das pessoas, de pés no chão, preocupada apenas em se manter viva até o dia seguinte, é infinitamente complicada – uma prodigiosa seleção de lembranças, experiências, crenças, intuições, aprendizados, interpretações, referências, projeções, desejos; ódios, afetos, temores, certezas, tudo aquilo que transcende a carne, anima-a, dá uso e razão à ela. Diante desta construção – forte como um sopro primeiro de vida, imensa, única em sua combinação – nos sentimos paradoxalmente grandes e pequenos, somos a obra engenhosa que não alcançamos conhecer completamente; e transitórios, porque reconhecemos a brevidade de nossas pegadas na areia do tempo.