Era lá por 1977, ou 78; tínhamos uma fazenda que produzia arroz, a 50 quilômetros de Paranatinga/MT – cidade de garimpo, violenta, apelidada de “paranabala” e, literalmente, o fim do mundo. Para se chegar lá, reservava-se de um a dois dias para a viagem de carro em atoleiros de terra branca e arenosa, preparavam-se provisões como a uma guerra (água, comida, remédios, arma) e contava-se com a ajuda dos caminhoneiros (mesmo ficando na fila de caminhões atolados, eles ajudavam nosso carro pequeno a sair de lá no braço, suor e boa vontade). O asfalto acabava logo depois da Serra de São Vicente, saindo de Cuiabá. Minhas férias nesta época eram passadas lá na fazenda, e mesmo com todo o desconforto, aos sete anos, eu adorava. Aventura o tempo todo, desde o momento em que saíamos de Londrina.
A fazenda possuía o básico de um empreendimento destes nesta época – leia-se, o mínimo indispensável para produzir, e nada mais. Nada de sede luxuosa, energia elétrica, água encanada, rádio, telefone, picapes caras, ou coisas assim. Dormimos nas primeiras férias em um rancho construído com a ajuda dos índios de uma aldeia próxima, em sapê; depois, em casas de madeira e chão de terra batida, sem forro, sem qualquer acabamento além do mínimo para garantir um teto e alguma proteção. No ranchinho, preferíamos montar uma barraca (!) dentro dele, por precaução; e uma madrugada ouvi pela primeira vez o rugido de uma onça, na mata próxima. Nas casas de madeira, já havia luz – a das lamparinas a óleo e do lampião a gás. Ah… Banho? Banheiro? O riacho próximo. E era assim, nesta simplicidade toda, por toda a propriedade.
E haviam os cães… estavam lá quando chegamos. Um casal. Os típicos cães de fazenda, meio vira-latas, meio perdigueiros. Nos adotaram de alguma forma, e, curioso, eu não tive medo deles. Flecha e Guerreiro andavam perto de nós o dia todo, latindo pouco, mas sempre atentos. Meu pai saía para a cidade, ou para resolver problemas dentro da fazenda, e às vezes voltava muito, muito tarde. Eu nem percebia as distâncias, os riscos, o isolamento; para uma criança de seis, sete anos, se a mãe está por perto, ou o pai, está tudo seguro, tudo bem. E haviam riscos… nossa fazenda, como quase todas, servia de passagem para outras tantas. Em um determinado final de tarde, meu pai havia ido à cidade, e estávamos nós cinco – mãe, irmã, eu, Flecha e Guerreiro – do lado de fora da casinha de madeira, próximos a uma pequena fogueira.
Por mais que eu puxe pela memória, não me lembro de rostos, de onde surgiram ou o que queriam; sei somente que apareceu ali um pequeno grupo de pessoas, e do nada, os cães mudaram completamente. Lembro que levei um susto, não pelas pessoas, mas por ver os cães naquele estado: mostrando dentes, avançando na direção dos desconhecidos. Latiam, coisa que não faziam quase. Eu nunca havia visto aquilo. Iam até nós, andavam à nossa volta, ganiam baixinho, olhando-nos… e voltavam a latir para o grupo de desconhecidos, a mostrar os dentes para eles, a marcar posição. Aqueles dois cães, que até alí nunca me inspiraram medo, tentavam pôr para correr um grupo maior e mais forte, defendendo duas crianças pequenas e uma mulher no meio do nada, absolutamente nada. Uma fazenda isolada, a 50 quilômetros depois do fim do mundo.
Os desconhecidos foram embora neste dia, e alguns anos depois a fazenda também. Hoje esta cena, a dos cães agitados, peitando o impossível, me atingiu com uma força que eu nem sabia que ela possuía; e pensei nas vezes em que somos como estes cães, quando andamos próximos às pessoas queridas, inclusive aquelas que adotamos. E andamos sem latir muito, sem estardalhaço, porque nos basta que seja assim. E quando andam assim conosco, sem percebermos, sem nos darmos conta disso.