No soy de aqui ni soy de alla

Conhecia Jorge Cafrune e gostava, mas não conhecia, até uns dias atrás, esta pequena jóia de letra, do Facundo Cabral. Na descrição do vídeo há a origem da mesma, ambos longe da Argentina, após uma apresentação no Uruguai. Simples e de uma beleza solar…

Me gusta el sol, Alicia y las palomas,
el buen cigarro y las malas señoras,
saltar paredes y abrir las ventanas,
y cuando llora una mujer.

Me gusta el vino tanto como las flores,
y los conejos, pero no los tractores,
y el pan casero y la voz de Dolores,
y el mar mojándome los pies.

No soy de aquí…, ni soy de allá,
no tengo edad, ni porvenir,
y ser feliz es mi color de identidad.

Me gusta estar tirado siempre en la arena,
en mi matungo perseguir a Manuela,
o todo el tiempo para ver las estrellas,
con la María en el trigal.

No soy de aquí…, ni soy de allá,
no tengo edad, ni porvenir,
y ser feliz es mi color de identidad.

já sonhamos outro Brasil

Lá pelos anos 80, eu olhava para as notícias de meu mundo e imaginava que em trinta ou quarenta anos seríamos quase suecos ou alemães em avanços sociais, acesso à cultura, representação popular, vivência ecológica, educação, capacidade de convivência entre costumes e crenças opostos (e até naturais num país de nossa dimensão), oportunidades, justiça, saúde, distribuição de renda; parecia que, aos trancos e barrancos, o Brasil caminhava nesta direção, assim como boa parte do mundo ocidental desenvolvido. Conseguimos – num momento histórico especialmente fervilhante – levantar uma constituição repleta de garantias à atuação social do Estado e proteção ao cidadão perante abusos deste. Questionamos (até onde foi possível) poderes enraizados na estrutura social brasileira, criamos balizas e contrapesos no sentido de evitar retrocessos. O resultado – imperfeito, fragmentado e multiforme como seus autores humanos – ainda assim era um passo imenso na direção de um futuro menos políticamente medíocre, socialmente cínico, economicamente injusto com seu próprio povo e sua terra; era uma ruptura e não um mero ajuste de trajetória. Olhava para frente e podia pensar um Brasil bonito, digno. Que falta, para quem vive o Brasil 2017, desta luz no futuro da história, que falta…

o que anda no vento

O vento naquela cidade
Deixava na pele um outro gosto,
Doce e doentiamente presente em tudo
(Não havia nesta época tanta poeira no ar;
Sobrara da poeira vermelha aquela que escondia o asfalto
& quebrava-se entre gomos desconexos das calçadas, ou nos jardins das casinhas de madeira, nas raízes nuas das árvores)
De algum jeito, recobria desta doçura estranha
até o olhar e o pensar da gente
incitava as pequenas gentilezas
os sorrisos entre desconhecidos
uns grãozinhos de tempo em que o vivente abençoava a condição.

 

 

1990

Bem aqui, mas bem longe no tempo (1989, 1990) – era meu cantinho preferido após as 16:30hs, numa época sem muitas perspectivas além do dia em que eu estava. Chegava no que à época era uma pequena mercearia, pedia ao Edson uma coca KS (a verdadeira, de vidro) e uma Folha de Londrina… da minha mesa, eu via surgir aos poucos o bando de meninas que se reunia alí, nas últimas horas da tarde, donas do olhar mais terno com que eu poderia retribuir à curiosidade delas.
Elas eram – aos meus olhos – a tal vida fazendo-se entender, um espetáculo barulhento e enérgico, vibrante, colorido; enquanto elas ensaiavam ou firmavam-se na adolescência, eu ia chegando a um acordo de paz com a minha, quase um armistício entre o garoto perdido dos anos anteriores e o rapaz recém-nascido alí. A tal ternura venceu-me.

Êxtase de Santa Tereza – Bernini

O Êxtase de Santa Tereza, de Bernini

…”O êxtase de Santa Tereza”, de Gian Lorenzo Bernini – finalizado em 1652. Retrata o momento exato da revelação do amor divino à Santa Tereza, coração atravessado pelo dardo de ouro flamejante de um anjo belíssimo (assim foi narrado o momento). Atenção à expressão atenta do anjo – que parece observar seu triunfo sensorial – aos tecidos que parecem móveis sobre o corpo teso da Santa, ao pé que parece buscar o apoio terreno que jamais encontraria, a mão inerte pendendo sobre a rocha, contraposto à vívida e sublime expressão no rosto de Santa Tereza.

Todo um caminho

…então você começa a reparar melhor no que ela diz, nas discussões em que ela se envolve, no que a movimenta. E descobre que a dona daquele violãozinho tão brasileiro, que dita as formas do vestido florido, pensa. E pensa bem e livre. Pensa em coisas que você nem imaginava que ela parasse para pensar aos 20 e qualquer coisa; e você se lembra da primeira vez que esta intuição atravessou sua mente: que mulher fantástica está surgindo dalí, que loucura será ela aos 35, aos 40, e que viagem até lá…

Terra em Transe, Brasil, em uma data qualquer…

Lembrei – nem sei o motivo, juro… 🙂 –  de TERRA EM TRANSE, longa-metragem do visionário Glauber Rocha. Tão brasileiro, tão preciso, violento e sem arreios. Ah, Brasil… vejo e revejo alí um pouco de todos estes teus infinitos populistas de ocasião, de teus conservadores enrustidos oferecendo um passado requentado em roupa nova, da tua direita arcaica ainda enraizada e saudosa da vida colonial, tua esquerda inconsequente e panfletária, patrulhadora como um adolescente instigado, teus eternos ladrões da fé alheia seja ela qual for, seus moralistas delinquentes fedendo a Franco, Salazar, Mussolini; teus trabalhistas preguiçosos blindados pela tropa-de-choque ideológica, teus pseudo-socialistas lambedores do chão da doutrina neo-liberal, teus alcaguetes de mídia, teus vendilhões apadrinhados cada vez mais ricos, teus assassinos do passado, do presente e por consequência do futuro, tua orgia privada sobre a res publica, a violência de teus atos mal-curada em teus discursos, enfim, um pouco da tua identidade política…

1984

…era 1984 mas ainda não-Orwell, e na maior cidade do interior do Paraná a gente ainda se sentava à noite no meio-fio, bicicletas encostadas no muro do terreno baldio, embaixo do poste – uma dezena de gurizinhos e meninas da mesma idade – pra contar piada, rir um do outro ou falar ‘sério’ – baixinho e em tom de surpresa e segredo, abismados, os fatos recém-descobertos do mundo adulto. Um tiozinho gordo passava apitando a cada dez minutos, de bicicleta também, e era toda a segurança de que se precisava – nem cercas elétricas, câmeras em circuito fechado, cadeados no portão antes das 23 horas, nem celulares, nada. Às 22, 23 horas começava a ‘chamada’, um a um, e a rua lentamente ia silenciando, até restar só o apito e a luz do poste até o dia seguinte…

empréstimos

E tudo me era imensamente novo – lugares, pessoas, o que eu vivia e quem eu era – & ela andava acerca, entre, pelos meus caminhos. Tinha seus dezessete e sonho, eu sonhos aos vinte e dois,  desespero vão por aqueles olhos bem pretinhos, o rosto de menina escondido nos cabelos claros, o andar, meu Deus o andar, eu que achava que sabia cada gesto & cada expressão dela e a sonhava aprender cada quarto cada motel desta abençoada Vila Real do Bom Jesus de Cuiabá, amém.

(a gente empresta um pouco a luz dum desejo antigo, bem antigo mesmo – coisa de 1992, 93, 94 – para se entender hoje. E só assim consegue.)

quando uma cidade, estranhamente, nos toca…

brasilia

“No príncipio era o ermo
Eram antigas solidões sem mágoa.
O altiplano, o infinito descampado
No princípio era o agreste:
O céu azul, a terra vermelho-pungente
E o verde triste do cerrado.
Eram antigas solidões banhadas
De mansos rios inocentes
Por entre as matas recortadas. ”

Vinicius de Moraes, Sinfonia da Alvorada  – escrita ‘lá’  a quatro mãos  – parceria com Tom Jobim –  e à época, nascimento de Brasilia. Talvez para ser Braxilia,  imaginada/sonhada pelo poeta Nicolas Behr.

 

 

Quase oração

Meu espírito velho
preto mulato colono italiano
que já viu tanto, nasceu/morreu/nasceu/morreu
tanto
e
desta vez, mal viveu.

Que me cuida
&
me conduz são em meio ao deserto
estéril barulhento e colorido desta época
deste lugar e persona…
sigo porque há caminho.

Algum lugar mato-verde-cheiro-planta-terra-água
depois chuva,
barulho dela nas pedras
e
dos pequenos bichos de Deus, amém.
Assim seja.

Guy Debord, sobre a sociedade do consumo e suas expectativas…

Como não amar Guy Debord, não??? Trechinho do ” IN GIRUM IMUS NOCTE ET CONSUMINUR IGNI”:

“A natureza ilusória das riquezas que a sociedade presente afirma distribuir seria amplamente demonstrada (se não fosse evidente em muitos outros aspectos) pelo simples fato de nunca antes um sistema de tirania ter mantido seu lacaios, seus peritos, e seus bobos da corte assim dessa forma, em farrapos. Eles trabalham horas extras a serviço da vacuidade, e a vacuidade os recompensa cunhando-os à sua própria imagem. Esta é a primeira vez que pessoas pobres se imaginam parte de uma elite econômica, apesar de toda a evidência contrária. Não apenas fazem estes miseráveis espectadores trabalhar, como fazem com que ninguém trabalhe para eles se não for mediante pagamento. Até mesmo seus varejistas agem como seus inspetores, julgando se eles são ou não suficientemente zelosos em abocanhar os bens sucedâneos que têm o dever de comprar. Nada pode esconder a obsolescência embutida de todas suas posses — a rápida deterioração não só dos seus bens materiais, como também até mesmo dos seus direitos legais relativos às poucas propriedades que possam possuir. Não receberam qualquer herança, nem deixarão nenhuma. ”

A propósito: o palíndromo que dá titulo ao filme (o texto vem de um filme dele), latino, é também uma antiga charada: “consumidos pelo fogo, vagamos em círculo pela noite”. A resposta primeira é a mariposa, hipnotizada pela luz do fogo; a segunda, qual o fogo e quais as mariposas, está à nossa volta, em nós, em nossa era e sociedade. 😉

Escândalos & fogos de artifício didáticos.

…Pensando aqui nas evidências de como mudamos nossa relação com o poder, o estado e suas estruturas, quando o assunto são as mumunhas e desvios: todos os ‘males’ devidamente expostos e levados à público nos últimos anos (e ‘bora pegar os últimos 25, para uma amostra bem ampla) de nossa democracia representativa (?) sempre existiram, com nomes e beneficiários diferentes. A grande e fundamental diferença é que corriam à boca-miúda, tocada adiante em fala baixa e cheia de reticências, silêncios, ironias. A indignação era a mesma – e correta, a sensação de impotência diante dos fatos idem, ou até maior. Herança de décadas de censura e risco real, físico, brutal. Penso que é uma ilusão a ser perdida urgentemente, a de que houve ‘uma época diferente’ em relação à ocorrência deste tipo de fato; houve é uma época de silêncio forçado e medo.

Damos o tal salto de 25 anos e vemos como esta nossa relação mudou. Escândalos tornam-se espetáculos de mídia pirotécnicos, com auxílio de investigações muitas vezes sérias, mais sérias do que poderíamos supor possíveis. O tal espetáculo, embora desgastado pela repetição (“é escândalo atrás de escândalo”, reclama o público), têm servido para mostrar a distância que há entre nossa ‘representação’ e nossos interesses verdadeiros. Têm colocado à prova a capacidade de esquecimento do brasileiro, obrigando-o a encarar as consequências de seus atos, seu discernimento. Para além da indignação natural com tudo que há de ruim num escândalo que envolva a gestão pública, juro que não consigo achar totalmente ruim que ele seja extra-divulgado e torne-se assunto comum, de boteco até. Há justiça neste espetáculo? Certamente não inteira, e certamente há meias-verdades, interesses ainda piores em jogo, vaidades, mesquinharias, etc; mas me incomodaria mil vezes mais saber dos fatos e suspeitas como estes vinham a 25 anos atrás, sabendo da pouca influência e alcance que teriam dali pra frente.

Nos tornamos acomodados e insensíveis ao rombo da vez, ao Mensalão/inho deste ou daquele partido, ao termo aditivo ad eternum da empreiteira/prestadora/contratada/consultora X, Y ou Z? Talvez. Corremos o risco de acatar como verdadeiros fatos ainda mal-apurados, intencionalmente ou não? Certamente. É o melhor processo de aprendizagem?? Não, porque ainda exibe apenas as peças (totalmente boas ou totalmente más, numa visão maniqueísta tristemente pobre e rasa, mal-hábito nosso, latinos). Não exibe o jogo inteiro, não nos mostra as dimensões do tabuleiro, não nos traz todas as cordas dos marionetes, em especial as mais grossas. Mas é o processo de aprendizagem que temos no momento, e que consegue chegar a todos os cantos, para quem queira ouvir – com menos reticências e mais consequências, agora. 😉

Brasilia, curiosidades satisfeitas & algumas histórias também.

Brasilia sempre foi uma cidade intrigante, para mim. A história da capital plantada em meio ao cerrado no planalto central, construída em plena adolescência pátria, me deixava perplexo. Motivos (do local, da forma, políticos, históricos), as lendas que rondam a construção, histórias de minha família ligadas ao lugar (meu avô morou lá em seus últimos anos de vida e trabalho), tudo contribuía para a curiosidade. Curiosidade antiga que só foi saciada (e precariamente, mal tive tempo de experimentar de verdade a cidade) há dois meses. Enviado para um treinamento, acabei justamente em Brasilia, para três dias realmente corridos junto a outros colegas.

Desta vez, resolvi dividir as despesas do hotel com um amigo, e encontrei nele alguém que também não conhecia Brasilia, e não se conformava em ir até lá (ainda que a trabalho) e voltar sem conhecê-la. Dei sorte: arriscamos um bocado (saímos à noite sem conhecer NADA da cidade, à pé), rodamos pelo setor hoteleiro, Torre de TV, praças, eixo, shoppings próximos (dois), fizemos o city tour no último horário do ônibus (e debaixo de um frio de quinze graus, expostos no andar superior do mesmo),  jantamos em um shopping bacaninha (Brasilia Shopping). Arrisco dizer que, se eu tivesse ido sozinho, provavelmente não teria me animado a sair tanto em tão pouco tempo.

E havia o hotel. Bom, pra começar, era antigo (o segundo hotel de Brasilia)… talvez, se eu não estivesse me divertindo, teria implicado com isso – o hotel era realmente antigo, construído em 1965 e pelo jeito, não reformado e com aqueles sinais de decadência meio tristes na manutenção. Mas eu gostei dele assim mesmo e, para três dias, estava OK. Corredores longos, arquitetura típica dos anos 60 no hall, quartos grandes,  louças de tamanho descomunal no banheiro, coisas que não se vê mais (porque parece que tudo o que foi construído nesta época hoje está transfigurado em algo atual). O hotel era uma ‘máquina do tempo’ em que se hospeda no passado, um passado bem gasto, é verdade, mas ainda assim uma experiência diferente e rica pra quem for atento e souber observar. Lí (pela net, dias depois) que foi vendido a um grande grupo hoteleiro e será demolido para construção de uma torre de 25 andares, outro hotel – certamente, nenhuma máquina do tempo.

Fiquei nele por duas noites e, asseguro, era BEM assombrado. Papo sério. Na primeira noite, levantei por três vezes para ver quem batia à porta (coisa de maluco, ok – não façam isso em outro hotel!). Mas fui, e na terceira, fiquei de botuca, esperando o engraçadinho pra pegá-lo no pulo, mexendo na maçaneta. Abri a porta no ato e…. senhores e senhoras, não havia NINGUÉM no corredor, nem luz, nem elevador, nada. Olhei pro colega, dormia feito criança na outra cama, olhei de novo pra porta, abri, sem viva alma. Ou melhor, quando muito, só alma.

Fiquei quieto e não comentei o ocorrido com o amigo neste dia. Mas eu ouvi e ví a maçaneta se mexendo por três vezes… e em nenhuma delas havia gente de carne e osso no corredor. Ok, achei ‘normal’ pela idade do Hotel (e, convenhamos, um hotel destes vê e passa por muita coisa ao longo de tanto tempo), me convenci de que era uma assombração boa (já que não senti medo algum, só espanto) e dormi tranquilo. No dia seguinte, em que fizemos o tal city-tour, andamos bastante à pé, chegamos bem pra lá de cansados. Assistimos TV e lá pelas tantas, percebi que assistia sozinho… desliguei pelo controle remoto, deixei-o perto da cabeceira, e caí no sono. Sono leve, bom. Aí acordo na manhã seguinte com a TV ligada, baixinho, num canal de notícias… meu amigo dormindo o oitavo sono, virado para o outro lado. E o bendito do controle no exato lugar onde o deixei… sem explicação. Olho o timer da TV… Desligado. Meu amigo acorda sonolento, pergunto para ele… “não, acordei agora. Vc. não deixou ela ligada de ontem pra hoje??”. Nossa assombração gostava, também, de televisão! Além de brincalhão, teve a gentileza de me acordar na hora exata para não perder o último dia de treinamento!

Sobre a cidade, posso dizer que resolvi parte da curiosidade e curti o quanto pude. Comi muito bem (especialmente no jantar – um grelhado sensacional no primeiro dia, e um banquete ogro no Outback do Park shopping, uma hora antes do vôo de volta); conheci os principais espaços, construções e monumentos (mas à noite, correndo), tive o prazer de andar a pé (odeio quando não posso fazer isso, perambular um pouco pelas redondezas do hotel) bastante (mais do que meus joelhos permitiriam normalmente), conversei com os locais (do comércio ao taxista, colegas de curso, etc), pude ver um pouco do mosaico humano de sotaques, visões de mundo dalí. Brasilia me pareceu marcada pelas suas divisões, pela história quase toda recente. É uma experiência humana única, e quem não acredita que a cidade e sua arquitetura moldam o homem que alí habita, vá lá e entenda a extensão desta influência. Gosto especialmente do assunto cidades e fiquei o tempo inteiro ligado, captando isso. Aproveitei e fui pesquisar sobre a construção, a escolha do local, as decisões técnicas e políticas, e achei uma série de reportagens do jornal Correio Brasiliense extremamente interessante aqui.

E, por fim, algo importante para mim: finalmente conheci (ao menos de passagem) os lugares onde meu avô trabalhou e viveu. Era estranho pensar em estar lá trinta e cinco anos depois do que ele planejara – meu avô estava mobiliando o apartamento cedido a ele para que nossas férias de 1976 fossem justamente lá em Brasilia; mas um ano antes disso, um despenhadeiro na estrada o levou de nós. Era ele o brincalhão do hotel? Não creio muito nisso. Mas sei que ele esteve comigo boa parte do tempo, curtindo as férias rápidas junto ao seu primeiro neto, de um jeito parecido (andando muito, como ele gostava e eu gosto, comendo bem e à vontade, e me apresentando a cidade).  De algum jeito difícil de explicar, sei que tivemos um pouco daquelas férias que não aconteceram, muitas décadas depois.

O filme, o cantor, a música (e a vontade de ser um piano)

O filme: A última sessão de cinema (The Last Picture Show), grande estréia do diretor Peter Bogdanovich no cinema. Um filme produzido em um grande estúdio americano, mas completamente fora dos padrões do ‘filmão’: falava sim do ‘american way of life’, mas visto do lado B – o dos moradores de uma cidadezinha perdida no interior do Texas, plena década de 50: guerra do outro lado do mundo (Coréia), declínio do cinema e ascensão da televisão como principal entretenimento (e formação/reprodução de padrões), o milagre americano acontecendo lá fora e em Anarene, apenas a poeira com que um vento onipresente insiste em cobrir a vida de seus habitantes.


Mais: o filme é, apropriadamente, filmado em preto e branco. Mas não um preto-e-branco qualquer, um preto-e-branco evocativo, granulado, afiado; em 1971, pouca gente arriscaria fugir do conforto das cores. Peter Bogdanovich era um destes, e o diretor de fotografia Robert Surtees realizou uma obra-prima, ambientando um passado (na época) não tão distante com a dose certa de luz que a memória impõe.

Baseado em um livro de Larry McMurtry (Streets of Laredo), o filme é a estréia na tela grande de um trio de atores na faixa dos seus 20 anos: Cybill Shepherd, belíssima, como a garota mais rica, bonita e fútil da cidade; Jeff Bridges, seu namorado pobre e boa-pinta, sempre em vias de ser trocado/traído/usado, e Thimoty Bottoms, seu amigo inseparável, o garoto meio perdido entre os sonhos e a realidade.

Juntam-se a eles Cloris Loachman e Ellen Burstyn, respectivamente a dona de casa que se envolve com Bottoms, e a mãe de Cybill (ambas interpretações fabulosas); e Ben Johnson, ator veterano de westerns, que faz o grande Sam, o Leão: espécie de ‘pai’ moral da cidade, dono do cineminha local (prestes a fechar, daí o título do filme), da sinuca e do boteco, ele faz exatamente este papel para os dois garotos. É em torno da figura forte de Sam que ambos balizam valores, comportamento, caráter.

O filme é um pedaço da vida dos dois, suas perspectivas, escolhas, aprendizados. Coming of age na america caipira dos anos dourados – em Anarene, no máximo um brilho barato.


Até aqui eu falei do filme e ele vale MUITO a pena ser visto. Quem viu, normalmente o descreve como um filme agridoce – você termina de ver e não sabe se está realmente mais triste ou mais feliz; mas dificilmente sairá do mesmo jeito, se prestar atenção nele. Mas um dos pontos fortes do filme é a trilha sonora, recheada de canções da época, especialmente de Hank Williams – patrono do country americano, e primeira grande estrela do country no radio. Ascendeu, ardeu ao máximo e apagou em tempo recorde.

O cantor: Hank Williams, nasceu em 1923 e aprendeu a tocar com um músico de rua negro e blueseiro, trocando as lições por um prato de comida. Hank foi o primeiro grande fenômeno do rádio Country, e deixou um legado de canções que foram (e são) regravadas de tempos em tempos por artistas dos mais variados estilos – rock, blues, country, pop. Hank não sabia ler partituras, mas compunha e escrevia canções tão diretas e imediatas que mexiam com o sentimento de uma America saída da guerra, apegada a um passado rural recente, irremediavelmente caipira e saudosa de uma inocência também ha pouco perdida.

Você vê a letra de uma música e estão lá homens e mulheres se comunicando e se relacionando de um jeito totalmente diferente da sofisticação esnobe das grandes metrópoles que o ‘cinemão’ prescrevia: aqui, amores e desejos & promessas e seus resultados são crús, básicos, vitais. A vida é dura e não há muito tempo para ter dúvidas ou dissimular, se jogar à estratégias.

Assim são suas músicas, de uma simplicidade tocante; e delas, calhou de eu conhecer primeiro Cold, Cold Heart, que ‘abre’ o filme acima. Em tempo: Hank Williams viveu como cantou: emplacou inúmeras músicas nos primeiros lugares do rádio, foi sua primeira celebridade country de alcance nacional, brilhou como a estrela que era e se consumiu em álcool (muito), confusões e morfina (Hank convivia com dores incuráveis), apagando-se aos 29 anos. Virou lenda.

A música: Cold, Cold Heart é o lamento de um pretendente rejeitado, alguém que está ‘pagando por erros que ele não cometeu’. Alguém no passado desta mulher desejada, um outro amante, a machucou o suficiente para que ela rejeitasse qualquer envolvimento a partir de então. Ele tenta de toda forma derreter este coração frio e assustado – ‘why can’t i free your doubtful mind and melt your cold, cold heart?‘. Qualquer um que tenha vivido a situação (e insistido, e pedido, e argumentado, e tentado provar que sim, se é diferente) vai se identificar com ele – sua angústia em provar que merece uma chance, e que ela também.

É algo que poderia virar uma música muito ruim nas mãos erradas, mas Hank tira dele uma SENHORA música – eu mesmo que não curto quase nada ligado ao country gosto – e lembro o quanto estive tomado por este sentimento – quem nunca investiu em um amor complicado, que atire a primeira pedra.

A Norah, Norah Jones. Esse docinho de coco que canta, instiga, relaxa e ainda me faz ter vontade de ser um piano, sai com esta versão belíssima de Cold, Cold Heart. Eu já gostava da moça, do repertório e da tal ‘presença’ dela; já era ligeiramente fã antes. Algum tempo atrás, tou procurando por Cold, Cold Heart no YouTube quando esbarro neste clipe: seria pedir demais querer indiferença deste meu coração de gelo, não? 😉

Cinema & hábito

Ontem, depois de um comentário postado no twitter, me dei conta de que tem pelo menos dois meses que não assisto a filme algum. Algum tempo atrás isso seria impensável, e comecei a decifrar os motivos deste meu desinteresse pelo cinema… para quem já se embrenhou em um curso de Radio e TV sonhando com video (linguagem, técnica, etc), era um caso grave. Dois meses sem ter uma boa história contada em audiovisual, seja ele qual for, cinema, dvd, on-line.

Quando encarava o cinema como objetivo distante (o último depois do vídeo, que era o objetivo imediato), assistia a uma média de dez ou doze filmes por mês. As meninas da video-locadora já me conheciam pelo nome, e nunca precisei de carteirinha; nestes anos, formei uma boa ‘biblioteca mental’ de imagens, referencias, roteiros. Como não conseguia de imediato me desligar do filme em sí e analisá-lo acima da diversão, via várias vezes cada título – a primeira apreciando o todo, e algumas outras estudando cenas, diálogos, tomadas, edição, montagem, áudio etc. Felizmente passou esta fase ‘de estudos’ e hoje consigo assistir a um filme sem tentar desmontá-lo logo de cara… vez ou outra ainda começo a fazer isso, mas paro a tempo.

Lembro de ter procurado títulos antigos (não só clássicos, mas aqueles ‘obscuros’ também), e de ter revisto com outro olhar filmes que já achava impressionantes antes de começar a estudar; vários contemporâneos (e tive uma baita sorte, de estudar isto numa época de produção mundial riquíssima), alguns bem comerciais (necessário também), experimentais (e o resultado nem sempre compensava o esforço). Mostras de cinema e vídeo, eventos deste tipo, eu batia cartão – religiosamente, ano a ano. De algum jeito, adiantei minha ‘cota’ de filmes em uma década, de forma que de uns anos pra cá – e especialmente com o fim das locadoras de DVD – desacelerei até o ritmo (ou a ausência dele) atual. É curioso, acabo vendo os filmes (e agora, ver mesmo – não mais ‘estudar o filme’!) quando já se tornaram, na mídia, passado. Aqui mesmo no Caminante.eti.br, os filmes sobre os quais escrevi tem um bom par de anos no mínimo… uma espécie de ‘processo de decantação’ – passado o rebuliço, vou lá dedicar um tempo à eles e, se mexerem comigo o suficiente, escrevo. Mas algo me diz que ando deixando passar um tanto de boas histórias… 😉

Nu, Pogodi!

 

Um lobo malandro, meio pirado, com dons de artista  e pra lá de atrapalhado, e um coelhinho um tanto ingênuo e com uma sorte dos infernos (dezessete anos escapando do lobo!), em situações absurdas em cenários comuns do dia-a-dia (museu, estrada, restaurante, navio): a receita do desenho animado mais popular na União Soviética entre 1969 e 1986 – Nu Pogodi!. Hoje, tem aquela cara datada dos produtos soviéticos de época que traz um charme a mais pro desenho – junto a um humor extremamente simples, bom/mau, sorte/azar e situações cômicas que dispensam tradução. Acho (puro achismo meu) que tem tudo para virar ‘cult’ , e me admira que ainda não tenha acontecido.

Não é nada que o ocidente não houvesse produzido décadas antes, e talvez aí esteja o outro motivo do charme do desenho. Mais: esta geração que assistiu Nu Pogodi! é a mesma que assistiu à transformação da URSS, à queda do muro de Berlim, ao renascimento das repúblicas independentes. Assim, acho que para eles fica como uma lembrança de outros tempos (piores? melhores? diferentes?) , recuerdos de uma infância em outro contexto.

Quem não viveu isso (ou viveu aqui, ao longe, de notícias e pela tv), e descobriu o desenho há pouco tempo, mesmo assim pode se divertir com o desenho (dispensa o curso intensivo de russo, acredite… 🙂 a música e as expressões dos personagens suprem as pouquíssimas falas) e ter um gostinho deste humor diferente: há um monte de episódios disponíveis na net, especialmente no YouTube, e rodando o mundo em torrents, para quem quiser ver off-line.